Proposta prevê prisão para mulheres que abortarem mesmo em casos de estupro, gerando indignação e debates acalorados
Na quinta-feira, 13 de junho, manifestantes ocuparam as ruas de diversas cidades do Brasil, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, para protestar contra o Projeto de Lei 1904/24, que equipara o aborto a homicídio e prevê penas severas para mulheres que interromperem a gravidez. O texto, em tramitação na Câmara dos Deputados, estipula penas que variam de seis a 20 anos de prisão para quem realizar um aborto após 22 semanas de gestação, mesmo em casos de estupro.
Atualmente, a legislação brasileira permite a interrupção da gravidez em três situações: quando a gestação resulta de estupro, quando há risco de vida para a gestante e no caso de fetos anencefálicos. A lei vigente não estabelece um limite de tempo para a realização do procedimento nesses casos. As penalidades para o aborto ilegal variam de um a três anos de prisão para a gestante, e de um a quatro anos para terceiros que realizarem o procedimento com o consentimento da gestante. Quem realizar o aborto sem o consentimento pode enfrentar de três a dez anos de prisão.
O Projeto de Lei 1904/24, entretanto, propõe mudanças drásticas. A nova proposta estabelece que qualquer aborto realizado após 22 semanas de gestação será considerado homicídio, com penas significativamente mais severas do que as atualmente previstas, o que tem provocado um intenso debate sobre os direitos das mulheres e a proteção das vítimas de violência sexual.
Em São Paulo, milhares de manifestantes se reuniram na Avenida Paulista, em frente ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), onde entoaram slogans como "Criança não é mãe", "Respeitem as mulheres" e "Fora Lira", referindo-se a Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados. Os manifestantes argumentam que o projeto de lei ignora a realidade das vítimas de violência sexual, muitas das quais são menores de idade e demoram a ter seus casos identificados.
Dados do Fórum de Segurança Pública revelam que, em 2022, 74.930 pessoas foram estupradas no Brasil, sendo 61,4% dessas vítimas crianças com até 13 anos. Especialistas alertam que a aprovação do projeto pode forçar meninas e mulheres a levarem a termo gestações resultantes de estupro, o que seria uma violação dos direitos humanos e da dignidade das vítimas.
Rebeca Mendes, advogada e diretora-executiva do Projeto Vivas, uma entidade que apoia mulheres que precisam de acesso ao aborto legal, classificou o projeto como inconstitucional. Segundo ela, a proposta "coloca em risco milhões de meninas que serão obrigadas a serem mães dos filhos de seus estupradores e mulheres que serão obrigadas a levar uma gestação sendo vítimas de violência sexual".
A disparidade nas penas também foi alvo de críticas. Se aprovado, o projeto pode resultar em penas mais severas para mulheres que abortarem do que para os próprios estupradores. "Esse PL protege o estuprador, não a vítima. E isso diz muito sobre a nossa sociedade", destacou Mendes.
Entre os manifestantes estava Jennyffer Tupinambá, uma mulher indígena do povo Tupinambá de Olivença, que compartilhou sua experiência traumática de violência sexual na infância. "Olho isso hoje sabendo que nossos representantes iriam me forçar a ter um filho de um estuprador. Esse é um trauma que até hoje, aos 40 anos, tento superar. E não há superação. Como é que uma vítima, que está totalmente abalada e traumatizada, poderia ser mãe?", questionou.
A urgência na votação do projeto, aprovada na noite de 12 de junho, pela Câmara dos Deputados, gerou ainda mais indignação entre os manifestantes. A decisão permite que o texto seja votado diretamente no plenário, sem passar pelas comissões. Arthur Lira justificou a medida, afirmando que a urgência foi resultado de um acordo entre os líderes partidários.
Em paralelo, a questão do aborto tem sido discutida no Judiciário. Em maio deste ano, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia a utilização da assistolia fetal para interrupção de gravidez, um procedimento utilizado em abortos previstos em lei.
A controvérsia em torno do Projeto de Lei 1904/24 reflete as profundas divisões na sociedade brasileira sobre o tema do aborto. Enquanto manifestantes e ativistas lutam pela manutenção dos direitos reprodutivos e pela proteção das vítimas de violência sexual, a proposta de endurecimento das penas gera um debate intenso sobre moralidade, direitos humanos e políticas públicas. A decisão final sobre o projeto terá implicações significativas para a vida de milhares de mulheres e crianças no Brasil.
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