Profissionais de saúde paralisam atividades por falta de pagamento, expondo a precariedade e a falta de transparência na administração dos recursos
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Médicos do Hospital Irmã Dulce, em Praia Grande, anunciam possível paralisação por falta de pagamento, expondo a fragilidade do sistema de saúde municipal. Foto: Prefeitura de Praia Grande. |
A já combalida saúde pública de Praia Grande, mergulha em um novo e preocupante capítulo de sua história. Médicos que atuam no Hospital Irmã Dulce, unidade essencial para o atendimento da população local, anunciaram uma paralisação de suas atividades a partir desta terça-feira (18), diante do flagrante descumprimento de seus direitos trabalhistas. O motivo da drástica medida é o atraso no pagamento dos salários, referente ao mês de fevereiro, por parte da SPDM - Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, organização social (OSS) responsável pela gestão do complexo hospitalar.
A situação, que já se arrastava nos bastidores, veio à tona com a iminente deflagração da greve. Segundo relatos de profissionais da unidade, que preferiram não se identificar por receio de represálias, o prazo para o repasse dos vencimentos expirou no último dia 29 de fevereiro, mas os médicos, em um ato de profissionalismo e compromisso com a população, continuaram exercendo suas funções. A paciência, contudo, chegou ao limite, e a paralisação, com a manutenção apenas dos atendimentos emergenciais, tornou-se inevitável.
O cerne da crise reside em um embate de versões entre a SPDM e a Prefeitura Municipal de Praia Grande. Os médicos denunciam que a associação alega não ter recebido os valores referentes aos plantões e visitas médicas realizados em dezembro de 2024, sob a justificativa de que o repasse da prefeitura não cobriu as despesas. A alegação ganha contornos ainda mais sombrios com a informação de que, além de não terem recebido o salário de fevereiro, os profissionais foram informados, de maneira extraoficial, sobre o risco de não receberem sequer os valores referentes ao mês trabalhado em curso, caso não haja um novo repasse por parte do poder público municipal.
A resposta da Prefeitura, por sua vez, agrava ainda mais o cenário de incerteza e indignação. Aos médicos, a administração municipal teria garantido que todos os repasses financeiros devidos à SPDM foram devidamente efetuados. Essa divergência de informações escancara a falta de transparência e o jogo de empurra que, lamentavelmente, se tornou uma marca da gestão da saúde pública em muitos municípios brasileiros.
"O primeiro sentimento é de indignação, pois não é possível trabalhar sem receber. O segundo, de desrespeito, por não haver nenhuma comunicação oficial sobre o porquê não pagaram e quando vão acertar o pagamento", desabafou um dos profissionais, expondo a angústia e a sensação de abandono que permeia a classe médica do hospital. A falta de um posicionamento claro e oficial por parte da SPDM sobre o pagamento do salário de fevereiro apenas intensifica a revolta e a desconfiança.
A paralisação anunciada pelos médicos do Hospital Irmã Dulce é um grito de socorro que ecoa a fragilidade de um sistema de saúde que, em vez de priorizar o bem-estar da população e de seus profissionais, parece refém de disputas burocráticas e de uma gestão financeira, no mínimo, questionável. A decisão de manter apenas os atendimentos emergenciais demonstra a consciência dos médicos sobre a importância de não desamparar completamente a população, mas também explicita a insustentabilidade de uma situação onde o trabalho não é devidamente remunerado.
A SPDM, enquanto Organização Social de Saúde, é responsável pela gestão de diversas unidades médicas em parceria com o poder público. Em Praia Grande, sua atuação abrange o Complexo Hospitalar Irmã Dulce, que engloba importantes serviços como o Pronto-Socorro Central, o Pronto-Socorro do Samambaia e o Nefro-PG. Para operacionalizar esses serviços, a SPDM recorre à terceirização de empresas médicas, um fenômeno conhecido como "quarteirização", que, em muitos casos, dificulta a fiscalização e a responsabilização pela qualidade dos serviços prestados e pelo cumprimento dos direitos trabalhistas.
Em sua defesa, a SPDM alega que, apesar de ter recebido os repasses da Prefeitura, enfrentou um déficit financeiro que a impediu de repassar os valores às empresas médicas terceirizadas. A organização também aponta para o fim do contrato anterior em dezembro, a nova licitação em andamento, o suposto fechamento incorreto das contas e a ausência de reajustes contratuais nos últimos seis anos como fatores que contribuíram para a crise. Em nota, a associação informou estar em diálogo com o município para viabilizar os pagamentos referentes apenas ao mês de dezembro de 2024, omitindo qualquer menção ao salário de fevereiro.
Diante da gravidade da situação, os médicos, com o apoio de um vereador da cidade, decidiram buscar respostas e responsabilidades. Uma auditoria dos contratos da SPDM será solicitada na Câmara Municipal de Praia Grande. O objetivo é lançar luz sobre a administração dos vultosos recursos públicos destinados à organização e identificar possíveis irregularidades ou falhas na gestão que culminaram com o calote nos profissionais de saúde.
A crise atual no Hospital Irmã Dulce não é um fato isolado na história recente da saúde pública de Praia Grande. Em fevereiro deste ano, a unidade já havia sido palco de polêmicas devido a apagões que deixaram pacientes sem água e insumos durante a intensa onda de calor que assolou a região. Além disso, outra unidade gerenciada pela SPDM, o Pronto-Socorro Central, também enfrentou atrasos salariais no ano passado, gerando preocupação e insegurança tanto nos profissionais quanto na população que depende dos serviços.
A repetição de problemas como atrasos salariais e falta de infraestrutura básica expõe a fragilidade de um modelo de gestão da saúde pública baseado na terceirização para organizações sociais. A falta de mecanismos de controle eficazes e a aparente falta de transparência na aplicação dos recursos públicos abrem margem para situações como a que se desenrola no Hospital Irmã Dulce, onde profissionais dedicados são desrespeitados e a população é colocada em risco.
A expectativa é que a Prefeitura Municipal de Praia Grande e a SPDM encontrem uma solução urgente para o impasse, garantindo o pagamento imediato dos salários atrasados e restabelecendo a normalidade dos atendimentos no Hospital Irmã Dulce. No entanto, a persistência de problemas como esses levanta um questionamento crucial sobre a efetividade e a sustentabilidade do modelo de gestão da saúde pública adotado no município.
A população de Praia Grande, que já sofre com as deficiências históricas do sistema de saúde, não pode continuar sendo penalizada pela falta de planejamento, pela falta de transparência e pela aparente negligência na administração dos recursos que deveriam garantir o seu direito fundamental à saúde.
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